
Pimentípoli é uma estrela que não existe. Eu a conheci quando tinha 12 anos, na revista da Abril “Os monstros”, da série Disney Especial, numa história chamada “Ora, ouvir estrelas…”, assinada por Carl Barks, meu mentor. Nela, Donald guia seus sobrinhos por uma viagem imaginária pelo espaço sideral, usando uma máquina criada pelo Professor Pardal. Não vou entrar em detalhes, mas eles visitam Júpiter, Petas Artimanus (uma, digamos, livre tradução de Phonus Artichokus, uma invenção do autor) e… Pimentípoli. Sei lá porque gostei desse nome e até batizei um de meus filmes com ele.
Um dia tive acesso à história original e descobri que não foi Barks quem o criou, mas o tradutor brasileiro – conversei com o Marcelo Alencar, o maior especialista em publicações Disney no Brasil, e ele me disse que apostava no finado José Fioroni Rodrigues; como não restaram testemunhas da época entre nós, creio que a informação se perdeu no tempó. No original, o quarteto ia para Betelgeuse, que realmente existe, é uma supergigante vermelha que fica na Constelação de Órion. Quando resolvi criar um blog para depositar meus escritos, não tive dúvida: ele se chamaria Pimentípoli. Por quê? Porque sim.
Eduardo Souza Lima, o Zé José
Contato: pimentipoli@gmail.com
Eduardo Souza Lima, o Zé José, carioca de Realengo, é escritor, jornalista, cineasta formado pela Escola de Comunicação da UFRJ. Dirigiu seus dois primeiros curtas, “Caçada implacável” e “Capitão Eléctron contra a Ameaça Venusiana” (feitos em VHS), em meados dos anos 1980. Começou sua carreira de jornalista em 1988. Foi crítico de cinema do jornal “O Globo” e documentarista da Fundação Roberto Marinho.
Seu primeiro longa-metragem, o documentário “Rio de Jano”, foi lançado em circuito comercial em 2004 pela RioFilme. Também dirigiu curtas premiados como “O Evangelho segundo Seu João” (documentário, 2006), “Três no Tri” (documentário, 2013) e “Bola para Seu Danau” (documentário, 2015), além de ter participado do longa-metragem coletivo em episódios “Rio em chamas” (documentário, 2014). A partir de 2015 começa a se dedicar também ao cinema de animação, principalmente voltado para o público infantil.
Seu primeiro romance, “Martina no Vale do Germânio”, começou a ser escrito em 1996 – ou seja, é pré-“Matrix”. Já tratava de temas como realidade e sexo virtuais, home office e streaming. Fosse lançado na época, poderia ter sido considerado visionário. Parou porque deixou a vida levá-lo. Como começou a ser escrito nos anos 1990, preferiu que ele continuasse dali, quando o retomou no fim de 2022. De certa forma, é uma ficção científica retrô. Mas também é uma história de amor obsessivo e de suspense, recheado de citações e humor. O segundo romance, “A transação do infinito, está saindo agora.
Entrevistas, reportagens e críticas


na corda bamba entrevista zé josé, o zé da zé pereira, que não escreve como um zé qualquer.
Uma odisseia no ciberespaço
Por Carlos Alberto Mattos
Foi muito divertida a leitura de “Martina no Vale do Germânio”, de Eduardo Souza Lima (Ed. Cousa, 2023). Mesmo quando eu não tinha muita noção de para onde o autor estava me levando nessa trip pelo mundo das virtualidades, eu me esbaldava com o pique de sua imaginação, o caleidoscópio incessante de ideias, referências e ultrajes aos cânones literários. “Narrativa cyber-absurdista” é como Braulio Tavares a classifica no posfácio. “Odisseia no ciberespaço”, digo eu, ainda rindo com as aventuras pornográficas de Moisés e suas amantes, ou com os empreendimentos radicais do Sr. Huáscar num tempo em que o mundo concreto sumiu do mapa e todos ficaram reféns do Lebréu, sistema operacional que reuniu todo o conhecimento humano. A história central é fertilizada por informes publicitários, fichas de filmes, prólogos espalhados por todo o livro e uma coleção de epígrafes antológicas. Ao fim e ao cabo, não sei onde fui parar, mas curti demais a viagem. Veja um dos vários teasers do livro.
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Martina no Vale do Germânio (2023), de Eduardo Souza Lima
Por Braulio Tavares
Vivo matutando sobre os caminhos até agora abertos pela ficção científica brasileira, e sobre as atitudes possíveis a um escritor brasileiro diante de um gênero dominado, quantitativa e qualitativamente, pelos autores de língua inglesa. (Spoiler: ainda não vejo solução.) Eduardo Souza Lima é crítico de cinema desde o tempo em que as barbas eram pretas, e neste seu romance de estreia adota o absurdismo fragmentário presente em outras obras nacionais recentes, com o Back in the URSS, de Fábio Fernandes. Um absurdismo com algo da sátira dos cineastas brasileiros que ao sucesso do seríssimo Tubarão respondiam com o escrachado Bacalhau. Ou o absurdismo com que os cineastas da Boca do Lixo paulistana canibalizavam cinema de Hollywood, cultura pop, marxismo de botequim, dramalhão latino-americano. Uma espécie de escracho reverente com que os artistas da indústria mais fraca homenageiam os da mais forte, enquanto lhes batem a carteira. Em suma: é uma ficção científica udigrudi. (Nem sei se o autor concordaria, mas eu sou como ele, não peço licença a ninguém.)
Uma jornada pós-tudo
Por Ricardo Moura Ferreira
“Martina no Vale do Germânio”, romance de estreia de Eduardo Souza Lima, nos leva a uma vertiginosa viagem pelo mundo pós-pós-moderno, pós-digital e até pós-virtual, uma jornada pós-tudo recheada de divertidas citações da cultura popular que vão do cinema, passando pela música, séries de TV, até os quadrinhos e a literatura em sentido amplo.
A narrativa, que abraça o pulp, salpicada pelo beat, pelos clássicos da ficção científica e pelo trash, é engenhosamente estruturada em uma colcha de retalhos que nem por isso impedem a trama de avançar, muito pelo contrário. São 10 prólogos, 15 episódios, 11 informes publicitários, 20 trechos de roteiro, 3 capítulos – que só aparecem no final –, junto a uma seção avulsa, “Amalgama MHL”, todos juntos e misturados, proporcionando ao autor a oportunidade de exercer sua veia satírica.
No primeiro prólogo, uma única palavra em letras garrafais: o REINICIANDO que é usado pra rebotar computadores. Daí em diante, espere tudo e mais um pouco.
Na era dos webmovies, filmes que misturam astros novos e antigos (em versão virtual), o autor nos brinda com divertidos anúncios de filmes que fazem referência a obras, atores e diretores reais. Como um “Sodoma e Gomorra”, produção japonesa de 2009 misturando Schwarzenegger e Ava Gardner no elenco, entre outros. Ou uma versão de “Napoleão Bonaparte” dirigida por Michael Bay e estrelada por Ben Affleck, Ashely Judd e Bruce Willis.
Moisés, o protagonista, navega pelo universo virtual do Lebréu, tornando-se uma espécie de pupilo do Sr. Huáscar, tendo como tarefa aperfeiçoar esse universo virtual. Sempre seguido de perto por uma série de personagens femininas, como a Martina do título, algumas fatais, outras nem tanto, mas todas enigmáticas.
“Martina no Vale do Germânio” é ágil, inventivo, divertido e inteligente, costurando em sua teia eventos históricos reais com outros imaginários. Tudo no melhor estilo em que vivemos, no qual o real começa a se misturar inexoravelmente com o mundo virtual.
A ficção científica do antropoceno: Zé José cria e(pop)éia bugada
Por Fernando Gerheim
A matriz de “Martina no Vale do Germanio” é a HQ. “Martina” é uma HQ mutante que tomou a forma de um romance que carrega em seu DNA todas as características genéticas da mãe: literatura B até a alma, ficção de polpa raiz, flanêrie num planeta assolado pela “teologia anarcocapitalista”, onde “cabe aos grandes executivos o papel de entertainer” e o fogo efêmero que a gente rouba pra viver nossa vida fugaz de filhos de Prometeu serve pra aprisionar e não pra libertar, como diz Moisés, personagem dessa delirante ficção científica do Antropoceno.
Vendido quando era bebê pelos próprios pais para a Chinchero co., uma big-tech todo-poderosa saída da mente de Eduardo Souza Lima, mais conhecido como Zé José, Moisés perde frequentemente seus contornos. Furando a chapeleta da verossimilhança psicológica, mistura-se com Huáscar nessa mescla de Crumb, Crépax, vídeo pornô, Luluzinha, cinema clássico hollywoodiano, graphic novel de Jean Giraud, comics da Marvel e da DC, tudo girando num multiprocessador literário com Lacan, Morus, Valéry, Camões, Kubrick e outras tantas referências que compõe esse épico estilhaçado.
Zé José está mais pra Paul Sheerbart do que pra Júlio Verne. Ao invés de multimilionários indo à lua ou procurando destroços do Titanic no fundo do mar ou construindo bunkers como resorts de luxo, o autor leva às últimas consequências a manipulação organológica do mundo físico pela intervenção nas estruturas subatômicas operadas pela ciência na era pós-industrial para implodir os próprios preceitos narrativos com humor ácido e crítico. Ler o livro não é só como navegar online, mas saber que essa navegação é alvo de disputas político-econômicas que se dão no próprio corpo.
Os temas centrais de “Martina” são os mesmos de sempre: amor e morte. Mas o enredo é submetido ao mesmo grau de entropia que bombardeia nossa atenção e a trama serve quase como pretexto pra coexistência dos mais diversos registros narrativos, de sinopse de filme a entrevista, a informe publicitário, a rubrica de roteiro cinematográfico, a memorialismo da história intestina da ditadura brasileira. Em meio a isso, o pastor “Pilas Salafrária” adota a estrela de David como símbolo no lugar da Cruz e transforma a Bíblia num “conto de fadas” que exclui Jesus por ser uma figura muito revolucionária.
Nesse registro fantástico satírico entremeado de crônica, o sr. Huáscar, uma espécie de Mabuse contemporâneo extraviado do sul global, antes de migrar para os EUA e se tornar magnata do vale do carbono, do Germânio e, enfim, criador do Lebréu, incursiona na carreira cinematográfica e dirige, entre outros, o webmovie “SuperCariocas X Liga de Recalcados”, no que parece ser uma exumação digital da chanchada e do cinema marginal juntos.
A vida sexual dos personagens de “Martina” parece a dos macacos bonobos. A moeda corrente é o “nariz de formiga”. Tudo nesta ficção cientifica está em desterritorialização e reterritorialização constante. “Martina” é uma FC que se passa no interior do Big-Data – é isto que parece ser o Lebréu criado pelo sr. Huáscar – e mostra, ao mesmo tempo, os pés de barro do seu mito de origem.
Tendo como matriz principal a HQ e como segunda fonte de inspiração o cinema, “Martina” leva às últimas consequências as premissas do gênero em algo como uma pós-chanchada glitch transliterária bugada que indaga: a ficção científica do Antropoceno é a própria realidade? Caos da velocidade da luz, libido descontrolada, melancolia exacerbada, está tudo ali, nos estertores desse globo giratório fora do gonzo cujo apocalipse entrópico, sagazmente, é o próprio fim do livro.
Questões de gênero
Por David França Mendes
Um grande amigo dos meus tempos de Eco é o Zé José. O Zé José, dizem, nasceu Eduardo Souza Lima, e é com essa alcunha que ele assina seu romance demencial (no bom sentido) “Martina no vale do germânio”.
Braulio Tavares definiu “Martina” como cyber-aburdista”, e eu não encontro definição melhor. O livro traz o espírito do que curtíamos nos anos 80, de “Alphaville” ao “Capitão Eléctron”, com a devida dose de “udigrudi”, ao contar a história de Moisés, que, como Dante no Inferno, tenta encontrar nas profundezas de um ciberespaço lúbrico a sua Martina, sua obsessão erótica, e que para isso precisa fugir do poderoso mecanismo de busca que ele mesmo criou.
E os parágrafos se sucedem como se cada um deles fosse um curta-metragem que tivesse por objetivo desconcertar quem lê, enquanto Moisés busca sua Martina.