Vai ter praia em Realengo! Como toda notícia sobre calamidades que batem à nossa porta, branquinho não tá nem aí. Em novembro, um estudo do Pnud alertou que até 2050 centenas de grandes cidades costeiras vão perder um bom terreno para o oceano – literalmente. São as tais das mudanças climáticas dando as caras de vez. Daqui a pouco a água vai bater em nossas bundas.
No Rio de Janeiro, projeções indicam uma elevação do nível do mar em 20 cm até meados do século e 48 cm até o fim dele. Essa reportagem da BBC mostra como vai ficar Botafogo e essa do G1 os impactos no Complexo da Maré. Mas muito antes de o Pnud dar o toque – há 30 anos, para ser mais exato – o cineasta Francisco de Paula já previa um cenário bem parecido em “Oceano Atlantis” (que dá para ver aqui), que eu só tinha visto no extinto festival Rio Cine, em 1993, no igualmente extinto Teatro do Hotel Glória, e que você pode ver aí em cima.
Para quem não se lembra ou não era nascido, o presidente Fernando Collor, que caíra no ano anterior, havia extinguido – é extinção a dar com o pau – a Embrafilme e, junto com ela, o cinema brasileiro; portanto, fazer este filme foi praticamente um milagre de dar inveja ao Zé do Caixão. O diretor havia realizado em 1985 o primeiro – e quiçá único – filme de ficção científica new wave brasileiro, “Areias Escaldantes”, estrelado pela galera do Asdrúbal Trouxe o Trombone e pelos Titãs, além de outros roqueiros menos cotados, Jards Macalé, Guará Rodrigues e outras figuraças. Na trilha sonora, o BRock comia solto.
Quando pintou “Oceano Atlantis” esperava-se algo com a mesma pegada pop, mas Francisco preferiu trilhar um caminho mais filosóficos, com diálogos falados nas mais diversas línguas – inclusive o basco. Talvez por isso não tenha sido compreendido na época. E até hoje pode-se dizer que “Oceano Atlantis” é um peixe fora d’água na cinematografia brasileira – o que é uma qualidade.
No filme rola exatamente o que eu disse acima: o mar subiu e cobriu boa parte do Rio, ficando fora d’água só os topos das favelas. Nesse mundo insólito, Nuno Leal Maia interpreta um mergulhador que acaba topando com a mítica Atlântida nas profundezas do oceano. O resto cada um interpreta como bem entender, como deve ser. Mas o que vale para a ficção não serve à realidade. Então, é bom levar a sério os relatórios do IPCC e do Pnud antes que o mundo acabe.
2 comentários a “Rio por água abaixo”
Que surpresa maravilhosa fazer parte do seu universo criativo. Vai aqui alguma ideia. Primeiro, parabéns pelo blog ! Quando terminamos o Areias Escaldantes fica impresso nos frames a nossa falta de orçamento. Uma produção que não cumpria o roteiro. Então, a primeira ideia que me vem é fazer um novo filme onde não seja preciso de locações, nem cenografia, nem conflitos. Na ocasião, o produtor executivo René Bittencourt sugere irmos para o fundo do mar. Vou unir esta ideia com a referência de Atlântida e escrita por May East, minha parceira. Com a exclusão da Embrafilme pelo governo federal, falta de tudo para se filmar. Vou buscar produtores estrangeiros que querem o filme em inglês. Daí, demoramos cinco anos para concluir o filme, trouxe o Ciro Pessoa para o roteiro. A ideia do dilúvio , os possíveis povos remanescentes do continente perdido, os escritos de Helena Blavatsky, Platão em “ Crítias”, textos védicos inundaram a nossa busca para fugir do inglês imposto pelo co-produtor Donald Ranvaud. E a presença do fotógrafo Dib Lutfi permite imaginar as favelas como ilhas, e o uso da retro-projeção de imagens submarinas de Roberto Faissal, em Fernando de Noronha ao nosso cenário vazio no Galpão Flor do Amanhã , cedido para a nossa filmagem , por Joãozinho Trinta. A gente quer falar de um mundo melhor, sem apego à matéria, priorizando o afeto. Pra isso, excluímos qualquer vínculo com a cultura pop do Areias e mergulhamos no imensurável universo do cinema, discutindo enquadramentos e planos para a criação de um governo corrupto, elites culturais privilegiadas, mostrando a solução numa agricultura braçal e familiar. Aí, entra o Brasil e pra não terem dúvidas, começamos o filme num hospício. Afinal, tem quer ser louco pra enfrentar a miséria, a fome com a coragem e perseverança. E, mais esta vez, imagino um filme sem produção e faço, o oposto. Viajamos para Fernando de Noronha, ao Norte, e plantações de girassóis, tomates, batatas no silfo país. No Rio de Janeiro, nós mantivemos na favela e no subterrâneo do aeroporto Santos Dumont.. fugir do lugar comum de imagens que caracterizam o Rio como cidade maravilhosa. Participamos de três festivais no Brasil, o filme recebe prêmio nos três, e a crítica se vangloria de tentar nos afogar. Vão poder sentir a fraqueza de suas vaidades formando frases feitas para nos desmerecer porque Oceano Atlantis está aqui e estará nas telas, em 2024! Obrigado, Zé José, Mestre Eduardo de Souza Lima por abrir as portas da invenção e afirmar o imaginário como matéria prima do cinema brasileiro independente.
Obrigado pelo retorno, meu amigo. Seu comentário é um excelente complemento para o meu texto. Quando li sobre o relatório do Pnud me veio à cabeça imediatamente o seu filme. Acho que as circunstâncias o tornam obrigatório. É preciso que todo mundo veja. Procurei dar minha primeira contribuição. Quando te entrevistei na época do RioCine pensei: “é isso, esse é o espírito do cinema”. No nosso caso, falar de independência ou morte não é exagero, porque ou a gente faz do jeito que dá – usando nossa criatividade – ou não faz. Abração.