Humana, demasiado humana


É difícil acreditar, mas “Ex Machina”, de Alex Garland, não é o filme sobre inteligência artificial definitivo, para acabar com o gênero na sua gênese. “The artifice girl” (ao pé de letra, “a garota do artifício”, no sentido de “isca”), de Franklin Ritch, lançado em 2022, mostra que o tema ainda tem muita lenha pra queimar. Infelizmente, ele não está em nenhum serviço de streaming no Brasil e mesmo lá fora foi lançado inicialmente apenas em VOD (vídeo sob demanda), mas como fez sucesso em festivais de ficção científica e fantasia, foi comprado pelo Prime e passou em uns poucos cinemas.

O curioso é que ele foi filmado como se fosse para cinema, janela 21:9, quando deveria ser 4:3, pois basicamente foi rodado em apenas três ambientes fechados com, no máximo quatro atores em cena: Tatum Matthews, Sinda Nichols, David Girard e o próprio diretor Franklin Ritch – Lance Henriksen faz uma ponta, muito importante, mas que deve ter consumido boa parte do orçamento franciscano. Um amigo costuma dizer que “Ex Machina” deveria ter sido adaptado para o teatro, mas “The artifice girl” leva muito mais jeito. Na primeira sequência só estão os quatro atores numa sala – sendo que Tatum Matthews aparece apenas numa tela – e se resume basicamente a um interrogatório de meia hora. Diz-se que foi gravado durante a pandemia e os atores – ótimos, por sinal – eram vizinhos de Ritche.

Os mesmos personagens estão na sequência seguinte, anos depois da primeira. O grande trunfo de Ritche é o seu engenhoso roteiro, com diálogos expositivos mas nada cansativos e as questões éticas que põe à mesa. Basicamente “The artifice girl” se resume às conversas do quarteto, que usa um programa de inteligência artificial chamado Cherry, moldado como uma menina de 9 anos, para caçar pedófilos. À medida em que o resto da equipe envelhece, Cherry mantém a mesma aparência e usa os mesmos artifícios para enganar predadores sexuais. Porém, ela evolui exponencialmente, até adquirir, e não apenas simular, sentimentos naturais.

Cherry não é mais apenas um amontoado de códigos binários: ela se sente como uma menina de verdade. Seria correto expor uma criança a criaturas tão pervertidas, repugnantes e monstruosas que poderiam fazer parte da bancada evangélica do Congresso brasileiro? Mas vou além: até que ponto é saudável para um ator-mirim participar de um filme barra-pesada?

O embate final entre criador e criatura é dolorido: eles salvaram centenas de crianças, mas a que preço? A cena final é arrebatador, de uma beleza comovente, que não atenua seu dilema moral. É o primeiro longa-metragem de Franklin Ritch, um nome para ficar de olho – veja aqui, na página do Youtube de sua produtora, Last Resort Ideas, os seus curtas e entrevistas etc.

Aproveito para indicar mais dois filmes sobre i.a. com mais ação e boas ideias, ambos no Netflix: “Zona de Perigo” (2021), de Mikael Håfström, com Anthony Mackie – não se deixe levar pelo título genérico, é um filme de guerra, mas fala de racismo como se deve, com cusparadas na cara – e “Upgrade”, de Leigh Whannell, que sairá do serviço no dia 30.

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