Quando desembarcou no Rio de Janeiro, sua cidade natal, depois de 47 anos de ausência, sua cabeça começou a latejar do lado esquerdo, da mesma forma que acontecia nos últimos meses em Paris, onde vivera todo esse tempo. Robertinho era fã de quadrinhos – ou BDs, como acostumou-se a chamar – e comparava o sintoma ao sentido de aranha de Peter Parker: era como se pressentisse que estava em perigo. Na França, creditou o fenômeno à ascensão de Marine Le Pen e seus néo-nazis. Como não sentiu nada parecido durante as mais de duas semanas de viagem de barco – abominava aviões –, acreditou que estaria seguro em solo brasileiro; a manifestação inesperada lhe causou um forte arrepio na espinha.
– Merde! Não há mais lugar seguro nesse planeta! – esbravejou, deixando as pessoas ao seu redor espantadas.
Envergonhado e paranoico, segurou a onda e se afastou rapidamente do porto. Robertinho era um garoto de classe média – quando esta ainda podia ser chamada assim – que passou as infância e adolescência de sunga em Ipanema. Sua aparência indicava o oposto, mas era bom de números; quando empresários e militares deram o golpe em Jango, ele cursava matemática na Universidade do Brasil, atual UFRJ. No campus da Ilha do Fundão, conheceu o estudante de engenharia Cid Benjamim e, por intermédio dele, entrou para a luta armada como integrante do MR8. Por causa de seus dotes, recebeu a alcunha de Contador. Cuidava das contas de sua célula, mas também participou de assaltos a banco. Quando percebeu que sua prisão era iminente, fugiu para o Chile. Só anos mais tarde, em território francês, lembrou-se daquele estranho latejar de cabeça que sentira na época.
Para o seu azar, pouco depois de chegar ao então Eldorado da esquerda, assassinaram Salvador Allende e impuseram uma ditadura ainda mais feroz no país. Ficou preso, na companhia de dezenas de milhares de militantes, no Estádio Nacional, onde foi barbaramente torturado. Nunca esqueceu as expressões de prazer de seus algozes. Como seu pai era advogado de uns figurões, foi solto, sob a condição de nunca mais pôr os pés no Brasil. Foi-lhe oferecida a oportunidade de ir para a França, embarcado num cargueiro. Chegando lá, começou a trabalhar em uma gráfica ligada ao PCF, em Paris. Casou-se com a bela Mariotte, comunista como ele; se descobriu estéril, então não tiveram filhos. Ainda assim, ganhou cidadania francesa.
A ditadura caiu de podre no Brasil, mas não teve vontade de voltar; seus pais estavam entre as 137 vítimas do acidente do Voo VASP 168 no Ceará, onde passariam férias, três anos antes. Conformou-se em ser francês, por assim dizer. Era viúvo há quatro anos quando seu “sentido de aranha” começou a disparar novamente. Acreditou, então, que era hora de se repatriar. Ter a mesma sensação em seu país de nascimento o fez sentir que havia pulado da frigideira para o fogo. Como vendera o apartamento em que morava com os pais, hospedou-se no de seu primo solteirão, no mesmo bairro. Ele se chamava Henrique e era um bon-vivant à moda antiga: vivia da herança da família e gastava os tubos com garotos de programa.
– Primo, só você para voltar à incivilização. O Rio de Janeiro não continua sendo, eu praticamente não saio, prefiro receber meus visitantes aqui. E tem que escolher muito bem quem você bota pra dentro de casa. Se eu pudesse manter o mesmo padrão de vida, ia embora now! E pode piorar, caso o Inominável seja eleito. Aí eu me mando até para a Rússia!
Henrique estava à espera de um de seus visitantes, então resolveu dar uma volta de reconhecimento pelo bairro. Ainda não tinha pensado onde iria morar, mas conhecia Ipanema de cor; ou acreditava que conhecia, pois o bairro não era mais o mesmo – mesmo! Chocou-se com a quantidade de pedintes e moradores de rua. Pensou em tomar um chope no Veloso, na Montenegro, porém o bar agora se chamava Garota de Ipanema e a rua, Vinicius de Moares. O pior, entretanto, era a freguesia: nada da boemia intelectual de outrora, só um monte de gringos bêbados assediados por prostitutas. Pelo menos o chope continuava bom.
Cerca de 20 tulipas depois, lembrou-se do primo falando em se mudar para a Rússia e, numa associação de ideias que só o miraculoso álcool seria capaz de provocar, embarcou numa viagem ao passado. Acabou chegando a 40 quilômetros e 40 anos dali, no Moscouzinho. Quem sabe lá sua cabeça não parava de latejar?
– Amanhã mesmo eu pego o trem da refesa! – disse para o companheiro de mesa imaginário daquela ocasião.
Embarcou no Santa Cruz e, embora não fosse íntimo da região, durante o caminho pôde perceber que o subúrbio tinha perdido toda a sua beleza peculiar. As lindas casas, que ostentavam gravadas em alto relevo o ano de sua construção, foram substituídos prédios que mais pareciam monumentos à feiura; o processo de favelização se espalhava como metástase de câncer. Os trens viraram mercado volantes, onde se vendida de tudo, de quinquilharias chinesas de péssima qualidade, salgadinhos cancerígenos empacotados, camisas de times falsificadas e os bons e velhos amendoins torradinhos e picolés.
– Dá um de milho verde – arriscou; continuava gostoso: ao menos isso não tinha mudado.
O Conjunto Residencial de Realengo, codinome Moscouzinho, começou a ser construído em 1941, pelo Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI), projetado pelo arquiteto Carlos Frederico Ferreira, inspirado na escola Bauhaus. Em sua edição de 4 de junho de 1943, o jornal getulista “O Radical” lhe concedeu uma reportagem de página inteira estampada pela ufanista manchete “Antecipando para o Brasil de nossos dias as conquistas sociais do mundo de amanhã!”. Eram dois prédios, com 57 apartamentos de sala e quarto e uma dezena de casas, hoje cercada pela favela da Vila Vintém por todos os lados; não obstante fora lá naquele subúrbio distante, do qual só ouvira falar, que o garotão da Zona Sul se sentiu em casa pela última vez. Moscouzinho ocupa até hoje dois quarteirões nas proximidades da estação de trem do bairro cantado por Cyro Monteiro, Gilberto Gil e Jorge Ben.
– Se eu morasse na Tijuca, no Leblon ou no Flamengo, abandonava a família, pra morar em Realengo… – cantarolava Robertinho o sambinha do primeiro, a caminho de seu destino.
O lugar se tornou um antro de comunistas – com direito a visita de Luís Carlos Prestes em pessoa. Quando a ditadura foi instaurada, virou refúgio de subversivos; por ironia, a Vila Militar era ali pertinho. Quando chegou ao conjunto residencial, Robertinho ficou chocado com sua decadência. E o pior: seu “sentido de aranha” disparou. Procurou por seu Raimundo e dona Neusa, que o esconderam, tratando-o como um filho; contudo, o casal já tinha partido dessa para melhor há décadas e o apartamento não pertencia mais à família deles. Já estava pegando o rumo da estação quando sua cabeça parou de latejar, como por milagre.
– Robertinho?!
Virou-se para ver quem o chamara; contudo apesar de o rosto do homem, que tinha mais ou menos a sua idade, lhe parecer familiar, não o reconheceu de pronto.
– Pô, não tá lembrado de mim, não? Sou o Carlinhos!
Claro, o Carlos Conceição, o Carlinhos, um jovem comunista como ele, mas que preferiu não participar da luta armada. Se abraçaram com lágrimas nos olhos.
– Eu também não reconheceria as tuas fuças velhas, mas esse teu jeito de andar não tem igual, te entrega de longe – disse Carlinhos.
Robertinho tinha problemas de articulação na perna direita, pois havia levado um tiro no joelho durante um assalto e o aparelho que ocupava na época era mal equipado. Por motivos óbvios, não podia ir a um hospital e um colega de armas retirou a bala com uma faca de cozinha, e costurou a ferida com agulha e linha comuns, desinfetando o ferimento com cachaça.
– Carlinhos, eu sinto aquela dor hoje só de lembrar. Sem anestesia! Imagina! Só consegui dormir depois de beber o que sobrou da garrafa numa golada só.
– Já que você tocou no assunto, o senhor não sai daqui sem tomar umas comigo aqui, não!
Robertinho falou de suas preocupações e Carlinhos lhe confirmou que a barra estava pesada pra quem era de esquerda, mesmo. O Inominável estava fechado com o tráfico e a milícia.
– Mas tem um boteco aqui onde o pessoal das antigas se reúne e o dono também é comunista safado. Um português com um bigode igual ao de Stalin! Uma figuraça!
Carlinhos o levou a um pé-sujo digno do nome. António, o dono do estabelecimento, não era vascaíno como a maioria de seus compatriotas, mas banguense. “O Bangu é o clube do proletariado”, justificava. E realmente logo que adentraram ao estabelecimento, Robertinho se sentiu bem, como ainda estivesse em alto-mar. “De pé, ó vítimas da fome, de pé, famélicos da terra!…” em pouco tempo cantava o trio.
– Lembra do José Caiafa Soares?
– Claro! Ele fingia que vendia pão de porta em porta pra trocar informações e fazer as articulações! Grande sujeito! Recebi uns recados dele no apartamento de seu Raimundo e dona Neusa. Inclusive foi ele quem me passou a rota mais segura era pro Chile. Dei azar porque logo depois deram o golpe no Allende. Os gorilas me encheram de porrada só de sacanagem.
– Ele morreu há uns 40 anos, porém o filho dele, o Ismael, ainda está vivo. Não vi ele hoje por aqui, mas como com certeza você vai voltar, não vai faltar tempo para uma prosa e relembrar mais ainda os velhos tempos.
Conversa vai, cerveja vem, Robertinho se sentiu à vontade para falar de sua misteriosa percepção extrassensorial. Imaginou que Carlinhos não o levaria a sério, todavia aconteceu o contrário. Ele imediatamente pegou o celular.
– Peraí que você precisa conhecer uma pessoa.
Dez minutos depois, Juquinha, filho de Juquinha e neto de Juquinha se juntou a eles. Era bem mais jovem, nem tinha chegado aos 30, mas era um rapaz sério e compenetrado, uma espécie de estranho no ninho naquele lugar. Ele fazia pós-graduação em História e a ascensão do neofascismo e do neonazismo no mundo, e no Brasil era o seu objeto de estudo.
– Temos um grupo interdisciplinar, eu, uma neurologista, um físico, uma psicóloga, um químico, um matemático e uma linguista, que estuda esse fenômeno sob diversas óticas. A gente se conheceu no Fundão e estamos trabalhando numa tese experimental. É claro que sem nenhum apoio, porque ninguém leva nossa hipótese a sério. Mas temos trocado ideias com estudiosos do mundo inteiro.
– O menino é bom, não é papo de bêbado nem de maluco, não! Ele teve a oportunidade de estudar no exterior, mas quis ficar aqui! – reforçou Carlinhos, que lamentava não ter tido a oportunidade de fazer uma faculdade.
Juquinha contou, então, que ele e seus amigos desenvolveram a hipótese de que líderes carismáticos ridículos, com Hitler, Mussolini e o Inominável era o que chamaram, por falta de um nome melhor, de vampiros de bom senso. Chegaram a criar uma equação matemática que misturava períodos históricos, hormônios, tons e frequências de voz de certas palavras – como acontece em muitas religiões; o transe místico – estatística e fisiologia, que explicava essa espécie de poder capaz de mesmerizar multidões e lhes sugar toda a inteligência. Outros tinham o mesmo dom, em menor grau, e serviriam de amplificadores ao cabeça.
– Se a gente pudesse estudar esse seu superpoder, digamos assim, poderíamos, quem sabe, replicá-lo e usá-lo como escudo de proteção ou detector.
Em outros tempos, Robertinho não levaria essa conversa a sério; entretanto, já tinha visto e passado por tanta coisa em sua vida que não duvidava de mais nada. Lembrou-se também do conto “O Horla”, de Maupassant, um de seus autores prediletos. O fato é que ele realmente estava convencido de que algo de muito ruim estava por vir e o latejar em sua cabeça era um indício desse augúrio. Ele não só pressentia; sentia como algo sólido.
– Eu não te disse que o garoto era bom? – falou Carlinhos.
Combinaram de combinar outro encontro quando estivessem sóbrios e Robertinho avisou que ia voltar para casa.
– Cara, segura a tua onda e vai de transporte coletivo. Não pegue táxi ou uber de jeito nenhum, é tudo vampirizado!
Robertinho seguiu o conselho do amigo e pegou o último trem para a Central. Era marxista marcado a ferro; contudo acreditava que aquele encontro não poderia ser mera coincidência: ele, Carlinhos e Juquinha tinham uma missão. Tomou mais umas latinhas no caminho. Quando desceu, ia atravessar a Presidente Vargas para pegar um ônibus pra Zona Sul. Viu o prédio do Ministério do Exército e resolveu mijar na frente dele. Quem não se sente invencível depois de tomar várias e outras? Não notou o cracudo indo em sua direção, saído do ninho instalado de viciados em volta do Monumento a Caxias, com uma faca de pão na mão. Agonizou horas caído na calçada, sem que ninguém viesse lhe prestar socorro.
– O Horla… – foi seu último suspiro.
E o Brasil foi engolido pela treva.
Conto publicado originalmente no livro “Flor do Bairro”, da Opera Editorial.
Compre aqui