A transação do infinito (Canto I)


CANTO I

Domingos virou Pardal

Anastásio sem fingir

Do Rio saiu corrido

Mas não era marginal

Era morrer ou fugir

Como amante do marido

Seu Domingos devia saber que quando a pessoa diz que não gosta dum apelido, aí é que ele pega. Fuleragem clássica. Virou Professor Pardal devido ao pormenor. Odiava a alcunha por motivos que nunca revelou a ninguém: era um personagem da Disney, para ele o símbolo mor do imperialismo, a foto três por quatro do RG do Grande Satã, e ainda podia chamar atenção indesejada – tinha turista que ia à região onde se refugiou somente para conhecer suas famosas figuras folclóricas. Pros outros, justificava que não era professor, nem passarinho. Todavia, no Catimbau todo artista, cientista ou excêntrico que tal ganha vulgo. Se desse aceite, lhe arrumavam outro que o deixasse enraivecido. Só que nem Domingos se chamava de verdade; adotou o primeiro nome de Calabar, para carregar peso na consciência, e se isolou do mundo por cagaço – duro de admitir, mas a realidade.

Fato é, pois aqui começa nossa história, que o Professor Pardal andava muito assoberbado ultimamente, então não tinha tempo pra se aporrinhar com gréia. A ponto de seu filho José, que chamariam Kaspar Hauser se o povo daquelas bandas soubesse quem foi Kaspar Hauser, abestado em estado natural, ficar agoniado. Ajudou o pai a puxar um cabo de quilômetro e meio da torre de energia até a sua derradeira invenção, na qual estava trabalhando sem parar há meses, uma tarefa digna de Maciste. Seu Domingos não dizia nada pro José, pois temia que o versejador de mão cheia e de nascença viesse com um poema de sua lavra que vazasse e o delatasse, qual Neil Innes, menestrel do Bravo Sir Robin, nobre Cavaleiro da Távola Redonda, há muito finado. José só fazia isso: repente. Fora criado só pelo pai, da mãe nada sabia. Era alto como o Gigante das Dolomitas, porém franzino, diferentemente do parrudo herói italiano; já seu genitor não chegava a 1,60 m e ostentava uma pança portentosa. Não obstante, suas fuças atestavam a paternidade, sem necessidade de exame de DNA – que não havia ainda se tornado trivial na época. Estava para chegar nos 30, embora aparentasse bem menos, e conhecia o lá fora praticamente só de ouvir dizer.

– Tu num sai do meu lado! Na cidade só tem gente que num presta! – justificava, desse jeito, o Professor Pardal sua misantropia.

O terreno onde moravam era geringonça pra tudo que é lado. Realmente parecia um laboratório de cientista louco, desses que se vê em filmes B ou seriados de TV camp. Seu Domingos colecionava desde jovem a revista “Eletrônica Popular”, que ainda comprava em suas ocasionais idas à capital e de onde tirava ideias para os seus próprios engenhos. Além dos aparelhos que zumbiam e luzinhas que piscavam, tinha cerca eletrificada, alarmes a granel, radar disfarçado de antena parabólica, cachorro banguela (por precaução) robô e outros aparatos para afastar intrusos e curioso em geral.

– Não tem cidadão ou bicho que entre aqui sem minha permissão! – se gabava.

Já de batismo, Domingos Cavalcanti de Assis era Anastásio José Ferreira dos Santos. Ele fugia de assombração; não do outro mundo que muita gente crê, mas de outro mundo que acreditava existir, outra dimensão, homem de ciência que era, que batizou Zetaverso, em referência à hipótese de Riemann. Fez parte de um grupo de guerrilheiros que lutou contra a ditadura, a FPRB, Frente Popular Revolucionária Brasileira – não confundir com a FPRdoB, Frente Popular Revolucionária do Brasil. Preso e torturado, arregou depois de apanhar que nem boi ladrão e delatou os companheiros. Finou-se um monte nas mãos dos macacos, inclusive sua mulher, Mafalda, genitora de José.

– Meu pai né cabra safado / Delatou por apanhar / Torturam sem piedade / De ficar todo cagado / Do brioco esfolar / Pense numa crueldade… – cantaria aos quatro ventos, desse jeito, o filho cantador, não fosse sua precaução.

Libertado depois da trairagem, Anastásio tomou outro pau de arara, dessa feita pro cariri, com o então Zezinho, fugido dos camaradas que sobreviveram. Escondeu-se bem escondidinho, por beira de três décadas, na Serra do Catimbau. Como era soteropolitano de nascimento, imaginou que ninguém iria procurá-lo nos cafundós de Pernambuco, Estado rival da Bahia. O tempo passou, repassou, bi, tri, tetra e pentarrepassou, e em vez de temer os vivos, começou a se apavorar dos mortos: previa, usando do método científico, pois como já foi dito não era supersticioso, que os camaradas a quem dedurou voltariam a este plano para se vingar dele. “Na tortura toda carne se trai” só é bonito na Vila do Sossego.

– Ninguém me pega, nem respirante, nem desrespirado, muito menos alma penada, que isso num existe! Vou-me embora nem que seja pros Quintos dos Infernos! – dizia pro papagaio Graciliano, seu confidente, o único ser vivente em quem confiava.

– Pros Quintos dos Infernos! – repetia a ave.

Dedicava as 24 horas diárias aos cálculos, a refutar Einstein, a observar os astros e a estudar o calendário asteca – era fascinado pela ciência das civilizações pré-colombianas. Em seus delírios astronômicos, supunha que um portal se abriria para o Zetaverso, morada de Tezcatlipoca, O Senhor do Espelho Fumegante, quando os planetas Mercúrio, Júpiter, Urano, Marte, Netuno, Vênus e Saturno estivessem perfeitamente alinhados no alvorecer de 7 de junho doutro ano. Ele, então, se aproveitaria para escapar para lá no mesmo instante em que seus algozes voltassem para cá; daí ter construído o citado dispositivo. O gato quilométrico forneceria a quantidade exorbitante de energia necessária para o seu funcionamento.

José, acostumado com os inventos do pai inventor, que lhe fizera a viola elétrica com amplificação embutida, assistia a ele trabalhar pouco falando e atendendo prontamente às suas instruções, mesmo as mais desvairadas, sem pestanejar, apesar da pulga que lhe castigava o ouvidor, de dia ou à noite iluminada pela lâmpada que armazenava a luz do Sol, outro prodígio por ele criado, fora a escova de dentes triônica, a castradora de porco a vapor, a prótese peniana magnética, a bússola enganadeira, o ledor de livro sonoro à velocidade do som, a rédea tradutora de zurro para jegues, Rosemary, a boneca inflável autolimpante, sua namorada, etecetera e tal.

– Etecetera e tal!

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Um comentário a “A transação do infinito (Canto I)”

  1. Sentimentos de Suassuna vêm de encontro aos olhos quando li. Eduardo Souza Lima é Referência para quem gosta de uma bem contada. Li “Martina” e, agora, neste primeiro capítulo de “ Transação “ encontro o que já imaginava: uma vontade de ler sem parar , um voo alto pelo surpreendente. Citações que anoto porque é muito bom descobrir o ritmo do diálogo entre o autor e leitor.

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