Besźel e Ul Qoma são cidades-estados localizadas no mesmo tempo e espaço em alhures da finada Cortina de Ferro, como se vibrassem em frequências diferentes. Seus moradores – assim como todo o resto do mundo – sabem dessa peculiaridade que une a as desune ao mesmo. Afiando o olhar é possível enxergar o “outro lado”, mas isso é terminantemente proibido: é preciso fingir não ver o que está vendo. Também é possível atravessar de uma cidade para a outra, depois de um período de adaptação.
Os cidadãos de ambas são vigiados implacavelmente por uma organização misteriosa chamada Breach. Seria uma espécie de Stasi? Possivelmente. A primeira analogia que nos vem à cabeça é a Berlim dividida do pós-guerra, mas também poderiam ser cacos da esfacelada União Soviética. Besźel é decadente e Ul Qoma tenta se modernizar desastradamente – uma espécie de novo rico em forma de edificações. É nesse cenário que se passa a trama de “A cidade e a cidade”, livro premiado de China Miéville, adaptado para uma minissérie de TV de quatro capítulos da BBC 2 por Tony Grisoni, com direção de Tom Shankland.
O Inspetor Tyador Borlú (o ótimo David Morrissey, que botou no bolso a série “The walking dead” com sua breve participação como O Governador) do Esquadrão de Crimes Extremos, e sua desbocada assistente, Lizbyet Corwi (Mandeep Dhillon), investigam a morte da jovem estadunidense Mahalia Geary (Andrea Deck), que teria sido assassinada em Ul Qoma e teve se corpo desovado em Besźel. Sempre assombrado pela morte de sua ex-mulher Katrynia Perla (Lara Pulver), ele se vê arrastado para uma trama que aparentemente envolve uma seita de fanáticos que acreditam na existência de uma terceira cidade, Orciny.
Confesso que o desfecho do caso, que envolve empresários inescrupulosos, cientistas idem e charlatões, me decepcionou um tanto, por ser mundana em excesso. Mas o diretor Tom Shankland consegue imprimir o clima opressiva da antiquada Besźel e da supostamente progressista Ul Qoma – há uma controvérsia interessante: Borlú fuma como uma chaminé e do outro lado isso é proibido; seria uma violação das liberdades individuais disfarçada de avanço civilizatório? Ao mesmo tempo, Besźel abraça desavergonhadamente o nazismo.
Usando filtros, desfoques e imagens sobrepostas, Shankland reproduz satisfatoriamente o visual das cidades coexistentes. Com pouca grana os britânicos produzem pequenos milagres que os estadunidenses conseguem transformar em lixo – vide o caso da patética versão da Amazon de “Utopia” da série original inglesa de 2013. A má notícia é que “A cidade e a cidade” é de 2018 e não está em nenhum serviço de streaming. O jeito é recorrer a um catador de lixo de Besźel.