A Humanidade dificilmente emplaca mais um século – na real, nem sei se sobrevive mais uma década –, então o que se convencionou chamar de ficção científica hoje é ficção contemporânea – coisas como “Duna” e “Fundação”, por exemplo, para mim hoje se enquadram mais no gênero fantasia. Eu já pensava assim, mas ao reler “Signofobia” (Editora 7Letras) essa ideia se tornou certeza. Fui alfabetizado com 4 anos de idade e até hoje me lembro do encantamento que me tomou ao conseguir traduzir aqueles símbolos – letras que formavam palavras se transmutavam de conceitos abstratos em sólidos. Não leio mais tantos livros como antigamente, mas sou absolutamente viciado, dependente de leitura. Leio qualquer coisa que apareça no meu campo de visão. Me é absolutamente impossível ignorar. A interpretação do signo se sobrepõe ao chamado mundo real. Sei que não sou o único: isso acontece aqui e agora, com multidões.
Fernando Gerheim é muita coisa, mas o que mais nos aproxima é a pesquisa de novas linguagens e seus efeitos – muitas vezes patológicos – sobre a sociedade. É algo que vem desde os tempos da pintura rupestre, mas que nos primeiros anos deste século, com o aperfeiçoamento exponencial da tecnologia, nunca fomos tão expostos a signos e quase nunca conseguimos processá-los adequadamente; não somos computadores; não temos capacidade para tal – e a ascensão do neofascismo talvez seja o efeito mais evidente disso. Dominamos a tecnologia nuclear e qual foi a primeira coisa fizemos? Bombas. Deciframos DNAs e criamos armas biológicas. Nossa vontade de auto-extinção é irrefreável?
A modelo-e-atriz (um produto típico desse tempo) começa a manifestar os primeiros sinais da signofobia em sua primeira grande chance na TV, numa telenovela na qual contracena com um jogador de futebol celebridade (outro gênero de época). São sintomas físicos: seu coração dispara, ela sente um gosto ruim na boca e suas mãos suam quando se vê num telão durante uma gravação. A partir de seu caso, o jornalista João Mustenberg – não posso afirmar com certeza, mas creio que o autor se inspirou no psicólogo Hugo Münsterberg (1863-1916), que traçou as bases da “teoria da recepção”, que afirma que filmes produzem no espectador sensações que vão além do que está impresso na película ou na cabeça do realizador, para nomear o personagem – conclui em suas investigações que há uma pandemia mundial que está sendo escondida pelas autoridades, causada do um vírus transmitido por imagens.
“O coração batendo, antes de significar alguma outra coisa do tipo
‘estou vivo’, significava o coração batendo, e o corpo híbrido de Amanda
e João, andando descalço pela beira do mar, sentia uma quietude satisfeita quando o bater dos seus corações sincronizados significava apenas
a si mesmo”, diz um trecho que considero particularmente bonito e paradigmal. As imagens que criamos a partir de nossa interpretação dos símbolos nos perseguem, nos assombram, não há mais como nos dissociar delas. O livro foi lançado em 2012 e relançado no pós-pandemia, em 2021 – embora o vírus, evidentemente seja metafórico – quando sua urgência foi reafirmada. Mas será contemporâneo até o nosso inevitável fim.
4 comentários a “Queria desver isso”
Gostei! Fiquei pensando se em algum momento da história estivemos tão mal. E a vontade de auto-extinção não seria mais o transtorno de muitos de extinguir o Outro que veem como ameaça? Muitas reflexões em Signofobia e em sua resenha.
Gostei! Fiquei pensando se em algum momento da história estivemos tão mal. E a vontade de auto-extinção não seria mais o transtorno de muitos de extinguir o Outro que veem como ameaça? Muitas reflexões em Signofobia e em sua resenha.
obrigado, cynthia.
Sim, a inspiração foi o Hugo Münsterberg. Gosto muito dos escritos dele sobre cinema do ponto de vista psi6 da percepção.