O “Guerra civil” estreou causando muita incompreensão, o que é compreensível. Não vi o filme ainda, mas o que esperar de um diretor que faz filmes nos quais o protagonismo sempre é de mulheres fortes e os homens são serezinhos frágeis, dignos de pena e, por isso, opressores, chantagistas emocionais, e ainda é acusado de misoginia? A falta de interpretação de texto é grave, mas a de imagens é ainda pior, já que elas devem substituir a palavra na comunicação num futuro próximo – e ainda vai ter gente que não vai entender a cena em que Chaplin e Virginia Cherrill se conhecem em “Luzes da cidade”. (ATUALIZAÇÃO 1: já assisti ao filme e acredito que quem não o considera o mais importante do século até agora não entendeu patavinas)
Mas há uma coisa que ele fez que eu realmente me intriga: por que “Devs” é uma minissérie? Daria um filmaço de uma hora e meia. Garland já é responsável por um dos três grandes filmes de ficção científica deste século, “Ex Machina”, ao lado de “Ad Astra” e “Sob a pele” – com menções honrosas para “Bacurau”, “Lunar” e “Primer”. A resposta talvez esteja em “Men”, seu filme anterior: seu esmero estético beira o maneirismo exibicionista. Talvez tivesse que abrir mão dele em “Devs”, mesmo se fosse um desses longuíssimas-metragens injustificáveis que entopem as salas em três sessões diárias. (ATUALIZAÇÃO 2: Garland preferiu o formato para ter mais liberdade criativa, pois o estúdio boicotou sei filme “Aniquilação” porque tanto ele quanto seu produtor se negaram a fazer as mudanças pedidas)
Se há dois filmes que rivalizam com “Ex Machina”, “Devs” reina soberano como a melhor série de ficção científica dos anos 2000. Seu mote é algo que venho pensando há tempos: a que ponto chegaria a velocidade de um computador quântico? Se o meu velho Dell já me deixa boquiaberto, imagino que um prodígio desses se ligaria sozinho antes mesmo de eu pensar em fazer isso. Em meu conto “Djinn” eu trato disso de raspão. Prever o futuro para o cientista louco/dono de big tech da vez, Forest, é o de menos e algo relativamente simples ele quer voltar no tempo – e, cá entre nós, embora a cena em que isso acontece pela primeira vez seja previsível, consegue ser arrepiante. Não um possível passado, um desvio de curso do tempo, uma outra linha temporal, mas “o” passado, para reverter um erro que pôs sua fragilidade masculina à flor da pele.
Há duas mulheres fortíssimas no enredo, Lilly Chan (cercada por todos os lados por machos vulneráveis), que investiga o sumiço de seu namorado – que ele acredita ter sido assassinado – e Katie, braço direito de Forest, alguém para quem a ciência está acima de tudo. O melhor personagem, porém, é Kenton, leão-de-chácara do arquétipo de Bill Gates, que dá uma aula de História e geopolítica a uma futura vítima – atenção, vem SPOILER aí, pra quem liga pressas coisas: ex-agente da CIA, serviu no fim do século passado passado no Oriente Médio. A missão de sua unidade seria garantir que o século XXI fosse dos estadunidenses, como o XX foram dos europeus e dos comunistas. Ele capitula: “Vi que tínhamos perdido para os chineses nas manifestações da Praça da Paz Celestial”. A Disney só deseja um funeral digno.
“Devs” é, pricipalmente, um embate entre o determinismo e o livre arbítrio. Nossas escolhas realmente moldam o nosso destino? Garland anunciou que daria um tempo na direção para se dedicar mais à escrita. Não o culpo: set de filmagem é um inferno – e o que vem antes e depois, nem Dante descreveria tão bem. Ele pode escrever uma boa história em um dia – é o roteirista do último filme do Juiz Dredd, que é bem digno e tem uma vilã fodona e quem salva o dia no fim é uma novata – enquanto perde uns bons 10 anos de vida para ver o filme que mais ou menos imaginou na tela, enquanto teve que aturar um sem número de imbecis.