Dossiê Çullhaj


Dažbog Çullhaj nasceu com a necessidade do dinheiro. Nada tinha a ver com desejo, capricho ou cobiça: era como respirar. Só adulto descobriu a razão. Seu pai, o bósnio Vahdet Andrić, fugiu de Sarajevo depois que Slobodan Milošević exterminou sua família. Como saber quem era amigo ou inimigo naqueles dias tenebrosos? Seus outrora amáveis vizinhos mataram seus pais e irmãos. A tensão transpassava o seu corpo, como choques causados por abstinência de antidepressivos, quando decidiu fugir. Atravessar meia Bósnia a pé renderia uma odisseia; por ora, vamos resumi-la.


Vahdet sobrevivia como dava. Sua única arma era um canivete de chaveiro; nem caçar poderia. Quando encontrava um animal atropelado pelo caminho, examinava o cadáver e, se ainda não houvesse sinais de putrefação, o cozia, assava ou salgava. Também expropriava bens de defuntos. Certa vez, encontrou uma rakia fechada entre os pertences dum finado anônimo. Depois que a consumiu por inteiro, pôs-se a dançar e a cantarolar “Ah moj dilber”.
Pouco antes de chegar à Albânia, tirou a sorte grande: encontrou um morto chamado Qendrimo Çullhaj com todos os documentos no bolso. Retirou dele a cidadania albanesa! Ah, se tivesse outra garrafa de rakia para comemorar… Decidiu ir para o mais longe possível de servos e croatas: escolheu Ersekë, cidadezinha com menos de 4 mil habitantes, localizada no sopé das Montanhas Gramos, nos alpes albaneses. Trabalhou como apicultor, onde conheceu Kaltërma Gjoka, com quem se casou. Menos de um ano depois, nasceu Dažbog – o pai, mais seguro, ousou batizá-lo com o nome de um deus eslavo. Costumava cochichar em seus ouvidos “você vai trazer Justiça, prosperidade e luz do sol para o mundo”. Essas palavras reverberaram.

Além da família e da Albânia, Qendrimo gostava de somente duas coisas: amaldiçoar Miloševićm, sérvios e croatas – estes, mais por causa do futebol; não guardava rancor do povo, o reservava todo para o sanguinário líder, pois tinha bom coração – e contar histórias do avô, que não conheceu. Marko Andrić fora partizan durante a Segunda Grande Guerra. Depois que conflito na Europa que se espalhou pelo resto do globo acabou, mais de 70 milhões de vítimas fatais depois, Andrić quis oferecer seus préstimos e experiência como bom soldado a qualquer luta que julgasse justa. Depois de perambular por numerosos conflitos, foi para o Rio de Janeiro, com a intenção de se juntar com os guerrilheiros brasileiros que pegaram em armas contra a ditadura. Nunca mais deu notícias – nem rendeu, pois seu nome não ficou registrado na História. Qendrimo acreditava que se apaixonou por uma brasileira e decidiu ficar.


Ainda criança, Dažbog Çullhaj constatou o óbvio: que o mundo era movido a vil metal e só ele lhe traria a segurança negada a seu pai. A fuga de sua mãe para os Estados Unidos com um suposto agente da CIA lotado nos Balcãs também o marcou profundamente. Sabia, porém, que precisava ir além; o dinheiro ganhou novo valor para ele. Políticos, tiranos, empresários e aristocratas exibiram sua absoluta incompetência para governar o mundo ao longo dos séculos. A Terra precisava de um dono – como os planetas da ficção científica que são habitados por um único povo, sem divisões por continentes e países. Seria a melhor maneira de administrá-lo. E cabia a ele “trazer Justiça, prosperidade e luz do sol”. Contudo, sabia que para realizar seu objetivo não bastava ser o homem mais rico do mundo: era preciso ter todo o dinheiro do mundo, a bagatela de US$ 118,2 trilhões.


Nas duas primeiras décadas do século XXI, a desigualdade social atingiu o grau de desumana. Dažbog não tinha nascido ontem e compreendia que as promessas e campanhas para que os bilionários pagassem mais impostos – principalmente as que partiam deles – eram pura falácia. Quando ouvia falar em filantropia ia a um restaurante grego quebrar pratos para descarregar a raiva. Não admitia correr o risco de ser engendrado em mais uma revolução leopardo.


Quando juntou os bilhões de leks que supunha suficientes, trocou tudo por dólares e rumou para São Paulo, no Brasil – país onde está, esteve ou estivera seu bisavô, o que lhe pareceu um sinal –, lugar que identificou, depois de extensos e extenuantes estudos e cálculos, que era o melhor do planeta para ganhar dinheiro fácil. Primeiro antecipou – era craque em estatísticas – que rua seria o próximo ponto de encontro da juventude endinheirada da cidade. O segundo passo era escolher um nome inusitado para o estabelecimento, um truque infalível. Assim, nasceu o Cafezes, que servia café processado em aparelhos digestivos de animais diversos e expelidos por seus ânus, o que lhe conferia um sabor ímpar.


Como previra, o Cafezes foi um sucesso estrondoso, replicado em oito filiais. Dažbog anteviu também que o negócio entraria em decadência inexorável em sete meses. Nos seus cálculos, entravam calendários de obras pública, os aumentos esporádicos da violência urbana no bairro e as palavras do governador – que eram como as dos homens que comandaram massacres na terra natal de seu pai.


Vendeu-o três meses depois e investiu noutro empreendimento: a loja de cuecas e bar de chope em bicas Casa do Caralho. Se quisesse, Dažbog poderia ser mais uma subcelebridade local. Como não ostentava riqueza, porém, passava razoavelmente despercebido. Ele não usava roupa de pobre como disfarce: economizava cada centavo para pôr em ação a segunda parte de seu plano o quanto antes – permanecer no Brasil era um atraso de vida. Abria exceção para o fërgesë, seu prato albanês predileto, pois era vegetariano, que ele mesmo cozinhava; permitia-se, inclusive, ao luxo de importar queijo de jumenta do sul de Gjirokastra para preparar a iguaria. Só se relacionava com prostitutas transexuais – somente sexo anal ativo, por se considerar heterossexual – pois acreditava que elas eram homens, e as mulheres mão mereciam confiança; trauma causado pela fuga da mãe com um Felix Leiter qualquer.


Ganhou o necessário dois anos e 12 filiais depois, e partiu para o Grande Satã para fazer um pacto com ele para ser o único proprietário do planeta Terra. Primeiro, estudou Física, Matemática e Química, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e depois fundaria sua empresa, que chamou de žÇ. Seu interesse era desenvolver novos materiais. Formou-se com louvor nas três cadeiras e deu largada na sua blitzkrieg para dominar o mercado. Assim que começou a ganhar dinheiro como gente grande, foi procurado por Kaltërma Gjoka, sua mãe, todavia se recusou a recebê-la. Isso aumentou mais ainda sua desconfiança em relação ao sexo oposto, que lhe granjeou a injusta fama de misógino irrascível.


Seu primeiro invento foi um tecido que absorvia a luz do sol e a transformava em eletricidade – tinha a textura semelhante ao linho, mas era feito de microcélulas fotovoltaicas. O primeiro produto da žÇ foi uma camisa ar-condicionado solar, porém o material se prestava aos mais diversos usos, principalmente na construção civil e na indústria de veículos – Dažbog não negociava com nenhuma força armada, empresas dirigidas por mulheres ou fábrica de armamentos. Dois anos depois, criou outro material ainda mais revolucionário. Fazia exatamente o que seu antecessor: absorvia luz do sol e transformava em frio; no entanto, usava água e algas microscópicas que forneciam energia por meio da fotossíntese. Era feito de matéria orgânica (um polímero de mandioca, ideia que tivera graças à sua experiência no Brasil) e, portanto, 100% biodegradável.

Também investia, a contragosto, no mercado financeiro e na especulação imobiliária, e lançou sua própria rede social, a miQësi, mesmo sabendo que jamais rivalizaria com as grandes, pois tinha outros planos para ela. Mais tarde, inventou uma nova fibra de carbono oito vezes mais resistente que a CrCoNi, além de infinitamente mais maleável. Praticamente monopolizou o mercado com o i-Pathyeshëm, como batizou o produto. Simultaneamente começou a estudar Biomedicina, Bioeconomia e Astronáutica.


Quando criou um método barato e realmente eficaz de sintetizar água, a žÇ não se tornou a big tech número um do mundo por muito pouco. A grande seca acabara de chegar e os Estados Unidos se preparava para invadir o Brasil, que detinha as maiores reservas de água do planeta, com a anuência dos políticos e militares locais. Dažbog, então, quebrou a sua própria patente e impediu a guerra (sic). Lembrou-se de seus anos em São Paulo e da gratidão que sentia por seus dóceis habitantes – sem, no entanto, deixar de calcular o quanto lucraria com o gesto. Acabou se casando com uma brasileira, a bela e curvilínea transexual gaúcha Marcelly Ferrari, que conheceu numa solenidade em Brasília; porém, ela não foi o maior troféu que conquistou naquele país tropical que a canção dizia ser abençoado por Deus.


Depois de comprar alguns políticos, pastores neopentecostais, generais, almirantes e até brigadeiros, criou seu próprio fantoche para substituir o dos estadunidenses na Presidência. A žÇ foi agraciada com o monopólio da biodiversidade da Amazônia – ou seja, de 10% do total da Terra. Àquela altura, tinha mudado seu plano original: instituir a igualdade social num planeta condenado a virar deserto inóspito seria contraproducente. Dažbog tinha pressa, pois a maior floresta tropical do mundo estava com os dias contados. Esperava encontrar em suas flora e fauna a verdadeira fonte da juventude; há alguns anos havia começado seus estudos sobre como usar células cancerígenas para combater o envelhecimento. A dificuldade do processo era encontrar uma substância que refreasse seu processo de reprodução contínua e descontrolada.
Suas pesquisaso levaram a explorar as terras onde viveu Parã Banu Bake Huni Kui, do povo Huni Kuin, no Acre, na fronteira com o Peru. A indígena morreu com 131 anos de idade e a longevidade em sua aldeia não era uma exclusividade dela. Coletou – fazia questão de comandar essas expedições – exemplares de todas as espécies de plantas, répteis e anfíbios da região, incluindo algumas ainda não catalogadas. Numa erva desconhecida pelo homem branco, que batizou Marcellys hunikuins, encontrou o que precisava. O Kosheii, miraculoso elixir que criou, retardava o envelhecimento em um ano a cada década. Dažbog acreditava que conseguiria aperfeiçoá-lo até ele ser capaz de extinguir a morte. Àquela altura, era o segundo homem mais rico da Terra.


A ascensão de Dažbog a dono do mundo ganhou seu derradeiro impulso quando foi desafiado pelo primeiro, um bôer bilionário que lançou uma astronave chamada Astronave, a aceitar uma aposta considerada inusitada aos olhos de todos: qual dos dois conseguiria ser dono de todo o dinheiro disponível no planeta. Não se tratava apenas de ser o mais rico e, sim, o único trilionário. Ele aceitou não só porque era o seu plano original, mas por conhecer as intenções nada nobres de seu rival, e suas infinita vaidade e capacidade intelectual limitada.


Dažbog também tinha um ponto a provar e comprou estatais de diversos países em crise. Como o problema da maioria dessas empresas era má gestão, as recuperou sem muita dificuldade. Tinha uma vasta rede de olheiros mundo afora que identificavam jovens talentos para ocuparem cargos chave nessas companhias, antes chefiados por apadrinhados de políticos ou por figuras influentes. É verdade que contou com a sorte em relação ao desafio proposto por seu rival. A missão conjunta entre a Nasa e a Alva T fracassou, e de forma trágica: a Astronave se chocou com Fobos quando estava prestes a pousar no solo do planeta. As razões do acidente jamais forma totalmente esclarecidas, pois, aparentemente, o maior satélite marciano, sofreu um pequeno desvio de órbita – algo praticamente inconcebível. Tentaram culpar os chineses, porém eles não tinham tecnologia para realizar esse tipo de sabotagem. O mais provável é que tenha sido um grosseiro erro de cálculo do Alva Em, supercomputador considerado infalível.


O bilionário bôer caiu definitivamente em desgraça, porque seus automóveis movidos a energia solar e autônomos vinham apresentando constantes defeitos. Dažbog comprou não só a Alva T a preço de banana, como levou junto a própria Nasa. A Agência Espacial Americana tinha perdido todo o prestígio adquirido nos anos de ouro da Guerra Fria. Não era mais considerada estratégica pelos Republicanos que tomaram o Congresso estadunidense e seu carismático líder Lancaster Dodd, um pastor que rompeu com a Igreja Presbiteriana e criou a sua própria, o Templo do Destino Manifesto da Abraão, eleito presidente por esmagadora maioria. Dodd, seguindo uma tendência mundial, considerava Jesus Cristo somente mais um falso profeta; o verdadeiro Messias nasceria em Nebraska. Para ele, a ideia de o Homem de aventurar no espaço era odiosa aos olhos de Ze Shro’a Hakel, como se referia à sua divindade suprema. Dodd empreendeu uma cruzada em solo estadunidense visando a conversão de todos, sobretudo os mórmons – por alguma razão obscura e particular – à sua fé.


Marcelly se submeteu a uma operação transexual completa, livrando-se do apêndice que tanto a incomodava. Dažbog realizava todos os seus desejos, mesmo a contragosto, e ela lhe prometeu que jamais deixaria de ser homem: o casal continuaria praticando somente sexo anal. Ele tinha uma devoção incomum aos glúteos da esposa. Mandou que fosse manufaturado, em tamanho natural e textura idêntica, uma reprodução em MiSH, outro sintético criado por ele, do seu belo traseiro: cada fio de pelo, sinais naturais e o žÇ que marcou com ferro em brasa na nádega esquerda dela, tão logo contraíram núpcias, numa cerimônia discreta. Levava a cópia sempre que precisava viajar sozinho. Costumava dormir espetado no artefato.


Dažbog não comprou a Nasa e a Alva T com a intenção de explorar o espaço sideral em busca de uma nova morada. Seu objetivo era explorar os minérios abundantes em Marte e no cinturão de asteroides. Os recursos naturais da Terra estavam escasseando e a ideia de procurar outro mundo capaz de suportar a vida humana para ele soava um desperdício. Afinal, ele tinha outros planos para evitar a extinção da vida no planeta..


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