Tudo o que foi
Renesmée ficou nua, modelo que mais bem lhe caía, assim que entraram no apartamento. Ele deu uma breve pausa para admirar seu corpo e logo em seguida se envolveram. Antes que pudesse perceber, era como se fossem um.
– Que delícia sentir você dentro de mim…
Quando a conheceu, jamais imaginou que uma mulher daquelas fosse flertar com ele. Teve namoradas bonitas, mas ela era tão bonita que devia ser proibida. Renesmée gemia baixinho e se movia numa coreografia perfeita. A ele cabia admirar ora seu lindo rosto tomado de êxtase, ora aquela bunda esculpida,
94 centímetros que o deixavam sem rumo, e sentir um prazer que jamais imaginara possível, quase insuportável.
– Vovô… vovô… ah oh ah, ah oh ah, ah oh ah, ah oh ah ah, blululululu, ah oh ah!
Foi trazido ao presente bruscamente por uma voz seguida de um whistle singular. Olhou para aquele jovem que nunca vira antes. Ele vestia uma roupa deveras extravagante; parecia uma espécie de super-herói de escola de samba.
– Vovô, é o Mathieu, só queria te lembrar que hoje vou me apresentar no Talentos da ReddeX. Meu cover de Vitas vai ser horrorshow!
Continuou sem entender nada, conforme estampava o seu rosto.
– Tudo bem, falei com papai, vocês assistem juntos ao programa. Abênça!
Mesmo que vez por outra fosse chamado à realidade contra a sua vontade, acreditava que aquelas viagens ao passado durariam pelo resto de sua vida e sobreviveriam, inclusive, à sua morte.
Haja hoje para tanto ontem
Era viúvo; teve um casamento feliz, mas não se conformava de tê-la perdido, mesmo que mais de meio século houvesse se passado. Ele ainda a teve vívida em sua memória por um bom tempo; todavia, sua imagem estava ficando cada vez mais tênue, até que manifestou os primeiros sinais de Alzheimer, aos 81 anos – uma proeza, pois a doença também já afetava os jovens. Foi quando Renesmée se tornou mais presente novamente, um efeito colateral que considerou bem-vindo. Porém, aos 85 implantaram em seu cérebro um chip que eliminava totalmente o distúrbio. E a partir daí as recordações de seu tempo ao lado dela ficaram mais e mais fugazes. Amaldiçoou a cibermedicina: de que adiantava se lembrar do hoje se lhe interessava o ontem? Queria voltar a ser deglutido por ela Eternidade afora. Tomou, então, uma decisão drástica.
Um amigo lhe indicou um certo Dr. Duplessis, cujo diploma havia sido cassado por conduta inadequada. O cibermédico atendia num consultório clandestino itinerante que funcionava em vagões de metrô vazios, às madrugadas. Era preciso marcar a consulta deixando um bilhete numa garrafa de desinfetante opaca vermelha na lata de lixo de uma determinada estação. Em outra parada, buscava-se a primeira instrução. Como o Dr. Duplessis era um foragido da Leĝo, às vezes era preciso por semanas e explorar todas as linhas que cruzavam a cidade para combinar o atendimento. O primeiro se deu na Châtelet, linha 11, segundo carro, às 3h. Além deles, tinha só um punk velho de mullets dormindo no piso da composição, com uma garrafa de arak na mão. Ele foi direto ao assunto; o médico estranhou seu pedido e aproveitou para dourar a pílula, como um vendedor de enciclopédia de porta em porta de meados do século anterior.
– Sua solicitação é assaz incomum. Geralmente extraio chips de localização de fugitivos. É um procedimento relativamente tranquilo, apesar de ser necessário perfurar o calcâneo do paciente. Porém, depois de uns poucos dias mancando, o que pode chamar a atenção da Leĝo, ele está totalmente recuperado e inencontrável. Mas, no seu caso, não se trata somente de uma cirurgia, pois sua família quererá reimplantá-lo novamente, com certeza. Não é um chip obrigatório, só que ninguém quer cuidar de um velho doente e teimoso. Preciso de algum tempo para encontrar a melhor solução.
Percebeu que o Dr. Duplessis estava querendo valorizar seu trabalho, contudo pouco lhe importava: queria entrar em sua máquina do tempo individual e nunca mais voltar; despedir-se para sempre da memória imediata, que só o fazia lembrar de sua decrepitude e do ensejo que perdera.
Duas semanas depois, encontrou um frasco verde na Porte de Montreuil, marcando o novo encontro para a madrugada seguinte, às 3h, em Pernety, vagão 6. Duplessis lhe explicou minuciosa e mecanicamente o procedimento, como um verdadeiro profissional (sic), garantindo que não causaria reações adversas.
– O chip anti-Alzheimer é feito, principalmente, de fulereno C60. Esse composto de carbono é solúvel em ciclodextrina, um carboidrato, portanto inofensivo para a saúde. Criei um nanobot de ciclodextrina, que dissolverá o fulereno, de forma que pareça que houve uma rejeição natural do seu organismo. É raro, mas acontece. Como é feito de moléculas orgânicas, o nanobot será eliminado naturalmente, não deixando rastros em seu corpo. Caso seja necessário, conheço um médico subornável de confiança que pode lhe vender um diagnóstico falso.
Não entendeu patavinas, mas assentiu com a cabeça. Duplessis lhe deu uma pílula.
– Recomendo que o senhor só a tome quando chegar num lugar seguro, pois a medicação começa a fazer efeito em meia hora.
Entregou ao ex-cibermédico uma pequena fortuna e tomou o rumo de casa. No caminho pensou em paliativos para a sua consciência: não se lembraria apenas de Renesmée, mas também de sua finada esposa, uma boa e bela mulher, da infância de seu dedicado filho, Jean, e o nascimento de seu neto Mathieu, um artista de muito talento. Também lutou bravamente contra a tentação de engolir de vez aquele comprimido.

Fora deixado por Renesmée quando lhe disse que seria pai. Não se arrependia da vida que teve; queria apenas uma segunda chance com ela. Mudou-se para Paris, na vã esperança de encontrá-la. Nunca mais a viu – ao menos não pessoalmente.
Chegou em casa, engoliu o nanobot e adormeceu. Acordou desorientado, sem saber onde se encontrava, até Renesmée entrar pela porta do quarto, como veio ao mundo, sorrindo.
– Quero sentir você dentro de mim.
Só aí se lembrou: estava onde sempre quis estar, para sempre.